fevereiro 26, 2016

Amália: um ano a quebrar corações

Era perto da uma da manhã quando começou e quase quatro quando percebi o que estava a acontecer: estava em trabalho de parto no dia vinte e seis de Fevereiro, quando supostamente ainda faltavam duas semanas para a gaiata estar pronta. Tinha o mais velho doente, estava desnoitada e, enquanto cuidava dele e de mim, percebi que em breve ia ter mais alguém de quem cuidar. Da primeira vez, não tinha chegado a este nível de dor durante as contracções, graças aos milagres da medicina moderna; desta vez, nem tempo para levar uma epidural tive. Foi a experiência mais alucinante da minha vida e também a mais empowering de sempre. Nunca me vou esquecer do silêncio e penumbra da sala de parto, dos gritos que me saíam sei lá de onde, de ter vontade de fazer força e ter a miúda cá fora em dois puxões valentes. Sozinha, sem ninguém da família, sem amigos na sala: só a parteira que me dizia que tivesse calma e que seria capaz. No fim, ela chamou-me valente e, no meio da alegria de ter feito tudo sozinha, insinuava-se a tristeza de não ter ninguém ali para abraçar. A não ser a minha pequena filha, que não chorou logo de imediato e me olhou com aquela cara séria dela.

É incrível pensar que passou um ano. Amália completa hoje o seu primeiro ano de vida, cheia de mimos dos rapazes e de colo da mãe. Passou quase um ano sozinha comigo, insistindo em não dormir, muito à imagem do seu irmão e precisando de muita atenção. De toda a atenção do mundo, mesmo quando já conseguia pegar nos seus brinquedos com aquelas mãos gordinhas sempre a postos. À parte dos miseráveis hábitos de sono (que ainda persistem, mesmo que mais regulados), esta pequena boneca adora comer, gosta de fazer adeus e brincar com balões, delira a puxar o cabelo da mãe e do irmão, começa a gatinhar mais depressa quando sabe que a vamos apanhar. É divertida, esta nossa filha. Já percebe quando tem graça e tenta fazer-nos rir. Nunca mas nunca acorda mal disposta, ao contrário do irmão que, excepto algumas excepções, sempre acordou a chorar. Ainda não anda mas empoleira-se sempre que pode, tem seis dentes bons para roer bolachas e côdeas de pão, adora tomar banho - só detesta sair da banheira.

Eu, como (penso) a maioria das mães de dois filhos, pensei que havia de ser difícil arranjar espaço para ela no meu coração. Afinal, cinco anos apenas com um filho é coisa para deixar marca. Não foi difícil gostar dela, assim mesmo loucamente, ao contrário do que esperava. Ela esgotou-me as forças ou as minhas hormonas esgotaram-me as forças e sei que algumas vezes a culpei pela minha quase-depressão. Mas a minha filha pequenina, que nasceu um bebé tão pequenino a comparar com o irmão, não fazia mais do que precisar de mim, de nós para poder crescer com tranquilidade. A minha bebé pequenina só chegou a este mundo perdida entre dia e noite, a precisar da minha total dedicação, enquanto eu me via a dormir aos soluços, a enlouquecer com a estupidez de querer controlar todas as coisas. Já não tentei perceber porquê: bastou-me o Vicente para entender que eles são como são mas mesmo assim custou-me a aceitar que ela não fosse um borreguinho a dormir.

A pequena Amália faz um ano e tem a sorte de ter parte da sua grande família com ela para festejar. Eu cá olho-a embevecida de cada vez que ela se despede de alguém ou sempre que tenta quebrar os limites, tentando escalar sofás ou escapar por portas entreabertas. Eu vejo a alegria com que ela nos olha todos os dias, especialmente quando acorda e percebe que nós os três ainda estamos ali e é tudo o que peço para ela: que continue indomável e curiosa e que se sinta sempre amada pela gente à sua volta. O resto? O tempo tratará disso.

fevereiro 24, 2016

Ouvir rádio, ler e... pensar em bebés

Desde que sou mãe pela segunda vez que me tornei (ainda mais) numa freak que tenta aproveitar da melhor maneira que pode todos os minutos que tenho livres. Já depois do nascimento do Vicente estava assustada com a possibilidade de não conseguir voltar a fazer as coisas de que gosto (principalmente ouvir música, ler e escrever) mas depois de nascer a miúda esse medo cresceu ainda mais. Afinal, agora há dois banhos para dar, dois jantares para dar, dois bonecos para pôr a dormir e há que entretê-los nos entretantos.

Para ser totalmente honesta, mesmo agora tendo dois filhos em vez de um, consegui recuperar e dedicar-me a algumas coisas de que gosto mesmo muito mais depressa. O segredo, se é que ele existe, é apenas um: ocupar todos os micro-momentos-livres com qualquer coisa que me dê prazer. Consigo ler uma meia hora antes de adormecer, consigo ouvir a Radar especialmente ao fim de semana de manhã enquanto tomamos o pequeno-almoço todos juntos, de vez em quando ouvimos uns vinis quando estamos todos na sala e ocupo todo o tempo em que estou a conduzir a ouvir podcasts.

Descobrir podcasts foi um prazer, pouco depois da miúda nascer. Quando saíamos para apanhar, primeiro ouvia música mas depressa fui subscrevendo um par de podcasts e agora estou quase que viciada nuns quantos. Há uns muito bons a contar histórias (o Serial ou Modern Love, por exemplo), há os super-hiper-divertidos que me fazem parecer uma tonta dentro do carro a rir (o Obrigado, Internet ou o Uma néspera no cu, por exemplo), há os que me satisfazem a curiosidade de conhecer outras pessoas através de conversas carregadas de intimidade (como o Fala com Ela ou o Até tenho amigos que são) e finalmente há os que falam sobre bebés e nascimentos e gravidezes em geral (como o Pregnancy Podcast ou o The Birth Hour). E é exactamente aqui que a porca torce o rabo.

Nunca achei (e continuo a não achar) que tinha aquela vocação para ser mãe, para ser aquele ser doce e paciente que ampara todas as quedas e que perdoa todas as traquinices sem sequer pestanejar mas acho que sempre soube que queria ter filhos. Houve uma altura - com quinze anos, talvez - em que quis ser mãe solteira, imagine-se, como se essa fosse uma decisão apenas minha, de um egoísmo que (reconheço agora) foi talvez próprio da minha adolescência. Nunca procurei um pai para os meus hipotéticos filhos mas ele lá apareceu, muito tirado a ferros, apesar de ele sempre dizer que era isso que ia acontecer um dia. Até ao dia em que realmente aconteceu.

Só que depois do nascimento da Amália comecei a debater-me com dois sentimentos contraditórios: parece que a nossa família está completa assim e, ao mesmo tempo, parece que falta mais alguém lá em casa. Se nunca me imaginei como aquela mãe, muito menos me imaginei mãe de três ou mais filhos - dois sempre foi uma espécie de barreira psicológica. Mas agora parece que essa barreira psicológica se esfumou, não sei bem como e estas conversas de mulheres só têm ajudado a que ela desapareça na sua totalidade. Tenho ouvido histórias incríveis de mulheres e da maneira verdadeiramente única como planearam as suas gravidezes e os seus partos. Ou de como inacreditavelmente nada correu como esperavam e lá se iam os planos de nascimento e os partos sem intervenção. O que têm em comum todas as histórias? A felicidade indescritível de ser Mãe, de albergar este projecto de vida durante nove meses para depois - mais intervenção, menos intervenção - trazermos essa vida ao mundo, a sensação de que se pode tudo quando se tem a sorte de parir au naturel ou a doce resignação de quem precisa de ajuda médica para poder finalmente abraçar o seu bebé.

De repente, este fascínio pela gravidez, mesmo depois dos nove meses mais ou menos miseráveis que nos trouxeram a Amália. De repente, esqueço-me das náuseas infinitas, das intermináveis dores nos ossos, da epidural que não tive tempo de levar... E um marido que queria ter dez ou onze filhos e um filho que queria ter mais cem irmãos (divididos entre bebés Vicentes e bebés Amálias, todos a dormir no mesmo quarto!). Esqueço-me do cansaço que quase, quase me derrubou, da falta que nos faz a nossa gente especialmente quando há um bebé novo no pedaço, das noites que ainda não consigo dormir, dos banhos, de de de de de... Tudo muda quando se escuta aquele bater do coração, quando a imagem mostra um ser humano em miniatura, quando eles se riem já cá fora e brincam juntos, quando querem os dois sentar-se no nosso colo ao mesmo tempo. O que seria de nós com um terceiro?

fevereiro 15, 2016

Quarenta e oito meses de casados!

Comemorámos quatro anos de casamento no dia treze. Quando fomos à conservatória marcar a data, tínhamos alguma pressa: ele tinha que mudar-se para o Luxemburgo para começar a trabalhar e eu ficaria em Portugal à espera que as coisas se compusessem. A funcionária começou logo por dizer que no dia catorze já não havia vagas, toda a gente se queria casar nesse dia. Toda a gente menos nós, a quem apenas interessava oficializar a nossa união, não importava em que dia.

Ia mentir se dissesse que não sonhei com um casamento convencional e como convencional não entendo a cerimónia religiosa (que ambos dispensamos e à qual não damos especial importância) mas sim o tradicional copo d'água: os noivos a entrarem na sala ao som da sua música, distribuição das lembranças que perdemos noites inteiras a preparar, os convidados a baterem nos pratos para os beijos da praxe, aquele bêbado clássico a partir a pista de dança, o casalinho de bebés que imita os adultos com um abraço desajeitado, as torres de camarão e a mesa dos queijos, as senhoras à volta da pista com o casaquinho sobre os joelhos, os noivos cansados de beijar tanta gente mas felizes por estar a partilhar a sua alegria com essas mesmas pessoas. Em vez de tudo isto, petiscámos com os meus pais, o Vicente e os amigos que estavam por Lisboa e depois fomos comer sushi os dois. Não houve cá noite de núpcias e muito menos lua de mel - só se fingirmos que o Luxemburgo é aquele destino paradisíaco. Em suma, não foi o que sonhei em termos de dimensão, pleaneamento e convidados mas foi igualmente cheio de amor.

Costumamos dizer que casámos por interesse. Há quem se choque e há quem entenda que isto é apenas uma anedota que costumamos contar: é que precisávamos mesmo de nos casar por razões fiscais, para simplificar as burocracias que aí vinham e para, de certa forma, protegermos os nossos filhos. Mas é claro que o nosso interesse era outro: tínhamos encontrado a pessoa com quem nos vemos a envelhecer, a pessoa que nos compreende de tal maneira que podemos ser verdadeiramente nós próprios - o que mais há a dizer? O casamento, embora não essencial, era o passo natural para quem já tinha um filho de ano e meio, estava junto há três anos e se conhecia há outros vinte.

Não usamos alianças: porque não usamos anéis mas, principalmente, porque não precisamos disso para nos lembrarmos (e ao resto do Mundo) que nos prometemos a alguém. Também não mudámos de nome, o que me causa alguns dissabores aqui no Luxemburgo, já que muitos serviços insistem em chamar-me Sra. N. T. T., quando o meu nome é Sra. A. M.

O casamento, para mim, é um estado de alma. Acho que estou casada com o Mário desde que demos o nosso primeiro beijo porque não me imaginava a estar com outra pessoa qualquer. Não preciso de símbolos exteriores ou de documentos oficiais para provarem o quanto eu gosto dele e o quanto ele mudou a minha vida e a minha perspectiva sobre Mundo para melhor. Sinto-me ainda mais casada com ele quando brigamos porque vamos encontrar o perdão para estas discussões sabe-se lá onde. Eu acho que só pode ser no amor, porque ninguém suporta algumas inanidades e palavras azedas com base numa amizade ou na simples simpatia - é preciso amar. Mas mesmo que dispense alguns rituais associados ao casamento, houve um que me faltou e continua a faltar: estender a comemoração do nosso amor a mais família e a mais amigos. E os anos vão passando sobre esta data sem que esta comemoração possa tomar forma. E todos os dias treze de Fevereiro eu brindo com o meu marido e prometo a mim mesma que esse copo d'água um dia ainda há-de sair!

fevereiro 02, 2016

Doze anos destas borboletas

A sério que não sei porque ainda aqui escrevo, tenho de começar assim. Este blog comemora hoje doze anos de existência, exactamento um terço da minha vida, o que, ano após ano, não pára de me impressionar.

Nos últimos tempos, tenho pensado muitas vezes em acabar com a minha presença nas redes sociais, blog incluído. Penso nisso especialmente por um motivo: a quantidade inacreditável de tempo que elas me sugam sem qualquer contrapartida positiva que não seja poder estar em contacto com os meus amigos e a minha família. Mas mesmo nisso às vezes tenho dúvidas: porque raio quero eu ler frases motivacionais ou correntes que não devemos quebrar sob pena de termos vinte anos de azar ou os recados que se mandam por indirectas? É que, no meio dos amigos e família, também há aquelas pessoas a quem não conhecemos bem ou os ex-colegas de trabalho com quem nunca tivemos grande confiança. Mas bem, podemos sempre restringir o que queremos ver e assim me vou aguentando por ali.

Mas o blog é outra história. O blog conhece o meu antes e o meu depois. O blog já me viu virada do avesso, a morrer de tristeza, a transbordar de alegria, a amar sem ser amada, a ser amada sem amar, a viver cinco ou seis vidas. Ele esteve sempre aqui, mesmo nos períodos mais longos em que eu não quis ou não pude escrever uma linha que fosse. O blog foi o meu maior confidente até ser descoberto, depois tornou-se no diário de uma jovem adulta e desnorteada, que seguiu até que ela se tornou em mulher e mãe de dois filhos. No blog escrevo eu e a quem ainda dá gozo comentar, sem desfile de estados, imagens e videos. Há uma audiência que eu espero que ainda aqui esteja porque gosta de (me) ler mas se ela não existisse eu continuaria a debitar as mesmas linhas, talvez mais soltas, talvez mais ousadas mas continuaria aqui.

Eu não escrevo tudo o que penso e muito menos tudo o que sinto. Nunca o poderia fazer, talvez apenas sob um pseudónimo. Não seria capaz de suportar o julgamento, tudo aquilo que os outros pensam de mim, já assim às vezes me custa. Ainda procuro uma forma de me libertar destas amarras e dar asas às torrentes de palavras que às vezes sinto dentro de mim. Não encontrei ainda a fórmula para as ordenar e torná-las em frases com sentido e isto é bom: depois de tantos anos a escrever, ainda posso surpreender-me. Mas, ao mesmo tempo, isto é também terrível: depois de tantos anos a escrever, ainda não encontrei a minha voz. E se por um lado eu acho que ainda tenho tempo, por outro parece-me que nunca vou conseguir. Por este andar, o blog ainda há-de cá estar para contar (também) essa história. Doze anos, caraças!

fevereiro 01, 2016

Há seis anos a moer-me diariamente o juízo, há quatro internacionalmente!

Foi há exactamente seis anos que soubemos que podíamos finalmente viver juntos. Não tinha ainda passado um ano desde o começo do nosso namoro mas tinha sido tempo suficiente para sabermos que não era vida namorar assim. Foram muitas horas passadas ao telefone, muitas sms trocadas durante o dia e durante a noite, muitas viagens para cá e para lá, muitas saudades e corações pequeninos sempre que a distância passava a duzentos e doze quilómetros. Namorar à distância pode ter piada ou fazer algum sentido quando somos adolescentes ou quando não podemos escolher mas torna-se numa tortura quando já somos adultos, responsáveis pela nossa vida e simplesmente não podemos mudar. Tudo se resolve, encarregou-se a vida de me ensinar, e no dia um de Fevereiro de dois mil e dez chorámos ao telefone por saber que a distância ia ter finalmente um fim.

Curiosamente, foi também neste dia que, há quatro anos atrás, soubemos que ia terminar outra distância, esta com mais de dois mil quilómetros de extensão. Ele a dormir num hostel como um adolescente, eu regressada a casa dos meus pais mas já com um filho nos braços. A procura tinha finalmente dado resultados e havia uma casa para os três. Fim às noites a partilhar um quarto com estranhos, fim aos serões a fugir do taxista psicótico, fim às chamadas com um bebé que não percebia que o pai estava longe, fim da incerteza. O dia um de Fevereiro tem tanta importância para mim, para nós como família!

Não posso dizer que a nossa vida a dois tem sido um mar de rosas, que não tem. E acho que nunca pensei que fosse uma das partes da minha vida em que mais tivesse de investir, em que mais precisasse de me adaptar. Vivi sozinha durante os anos suficientes para apreciar algum silêncio, para gostar do meu espaço, para esperar ter as coisas à minha maneira. Aprendi a desentupir o lavatório, a abrir garrafas de vinho, entrei em casa pela janela das traseiras quando fiquei sem chaves. Eu chegava-me e era tudo, nessa época em que pensava que estaria para sempre sozinha. E depois entra-me ele pela vida dentro, com a sua ordem e o seu feitio, com uns braços que parecem intermináveis quando me tenta proteger. Ainda luto contra isso porque me programei para me proteger a mim mesma. Ainda o empurro quando me tenta amparar as quedas porque o meu orgulho está acima da minha necessidade de protecção.

Mas há seis anos que partilhamos o mesmo espaço, mesmo depois do cepticismo de alguns, mesmo depois das cambalhotas que a vida nos fez dar. Eu cá acho que a tendência agora é simplesmente  melhorar: somos uma equipa a funcionar bem mas ainda nos falta encontrar aquilo que nos tornará numa máquina. E ainda se aprende mas mal seria se já tudo estivesse sabido...