janeiro 27, 2016

Diário de bordo

É a quarta semana depois de ter regressado ao trabalho e sinto-me uma máquina, com o que isso tem de bom e de triste.

Durante a semana, não há tempo para quase nada. Os banhos deles, o meu, o jantar, cama para eles, sobramos nós. Ela tem sempre sono, ele não tem mas se se deita adormece logo e profundamente. Há dias em que só os adultos sobrevivem à hora de jantar e o silêncio e falta de agitação são estranhos. Não tenho paciência para ficar a ver televisão, por isso tenho lido sempre umas páginas antes de me deitar e com isso estou em vantagem no desafio que impus a mim mesma: ler doze livros este ano.

Nestas quatro semanas, não trouxe almoço para o trabalho apenas uma vez e porque tinha tido jantar de trabalho no dia anterior, chegado tarde a casa e de manhã resta-me pouco tempo para preparar as minhas coisas: entre mudar e vestir a miúda que acorda sempre bem disposta e conseguir arrancar da cama o miúdo que acorda sempre mal disposto, a minha luta é apenas com os gritos que tenho vontade de dar. Veste-te, queres leitinho, bebé?, o que queres comer?, lava os dentes, então e a cara?, olha o casaco, deixa de esmagar a tua irmã, e as manhãs antes de sair de casa passam num instante. Os almoços? Preparo-os ao Domingo, muita coisa só no forno ou cozida, o cuscus, a massa ou outros acompanhamentos podem preparar-se no dia, cozo dez ovos para mim e para o pequeno, a fruta arranja-se antes de ir para a cama. Não quer dizer que consigamos tratar do jantar todos os dias: às vezes não há mesmo pachorra mas é bom podermos os dois fazer as coisas a meias.

E depois sobram os fins de semana. Dois dias para estarmos com os pequenos, dois dias para a limpeza da casa e para tratar da roupa, dois dias para fazer as compras, dois dias para sair de casa e arejar. Quarenta e oito horas não chegam para isto tudo. Ou chegam mas é preciso esticar um bocadinho o tempo. É preciso muita ordem e disciplina e, quatro semanas depois de voltar a trabalhar com dois filhos, suponho que ainda estou a aprender a disciplinar-me. No fundo, não me custa muito esta divisão eficiente do tempo: o que custa é sentir que não há muito glamour, não há tempo para fazer bonito, não há aquelas vidas ideais. E para mais neste Inverno, em que saímos de casa e é noite escura e entramos em casa e o cenário é exactamente o mesmo. Havemos de aproveitar o quintal a partir da Primavera, prometo a mim mesma. Havemos de habituá-los a gostar de caminhadas, congemino em silêncio. Havemos de sair sem pensar no que há para fazer, sempre desejei. Um pouco mais de disciplina e talvez cheguemos lá. Um pouco mais de tranquilidade e chegamos lá de certeza.

janeiro 15, 2016

Ódios de estimação: a neve



Chegou com muito atraso.Era como se o Inverno não fosse Inverno ou fosse apenas um sucedâneo da estação a que estamos habituados que comece no dia vinte e um de Dezembro. Uns dias de chuva, muitos dias cinzentos, quase nenhuma ponta de Sol. E agora esta chatice chamada neve.

Eu desconfio que as pessoas que dizem que adoram a neve só o fazem porque não têm que viver com ela. Claro que é muito giro ir para Pas de La Casa e esquiar mas melhor ainda é regressar a casa, enxutos e sem precisar do drama das botas, casacos, gorros, luvas e cachecol, pá para limpar a neve e sal para impedir que os vizinhos partam uma perna à nossa porta. Também não é lá muito engraçado ter que limpar todos os vidros do carro com uma escova gigante e ter que estar sentada durante longos minutos à espera que o carro aqueça. E depois ter que enfrentar a neve com uma bebé (no ovo) pela mão e um miúdo que apenas quer fazer bolas e bonecos de neve, enquanto todos estamos atrasados, foi coisa para me esfrangalhar os nervos logo de manhã.

Um pessoa deita-se tranquila, passa a noite sem ouvir mexer uma palha e, de repente, acorda e as ruas estão cobertas de um espesso manto de neve. Nisto prefiro a chuva: chove torrencialmente mas nós sabemos o que se passa na rua. A chuva é definitivamente menos traiçoeira. A única coisa boa da neve é quando levantamos as persianas, chamamos os miúdos e os olhos iluminam-se com o entusiasmo que sentem. O mais velho foi hoje patinar no gelo com a escola. Agora é esperar que não me chegue a casa encharcado e doente (como eu estou a prever) e que guarde a vontade das bolas de neve para amanhã de manhã. Pode ser que esta lambisgóia continue a cair até amanhã, no mais profundo silêncio para delícias dos miúdos. Desta graúda é que não!

janeiro 14, 2016

Ontem era dia de celebrar

O dia de ontem teve duas efemérides para mim. Fez exactamente um ano que deixei de trabalhar para entrar na licença de maternidade e também que assinámos, no notário, o contrato com que comprámos o nosso apartamento.

A distância que já vai de lá até aqui! Eu tinha acabado de deixar de trabalhar e pensava, com grande prazer, no que era ter um ano inteiro sem escritório pela minha frente. É certo que já me arrastava em vez de andar mas o simples facto de me poder resguardar durante tantos meses era suficiente para me deixar menos ansiosa. Não tinha verdadeiros planos mas sabia que ia gostar de estar em casa, cuidar da miúda e das coisas domésticas. Enganei-me e não me enganei.

Nesse dia, pude finalmente tomar o pequeno-almoço com alguma calma antes de sair para o notário. O caminho era curto e fi-lo de autocarro, não me lembro bem porquê. Encontrámo-nos à porta e, descobrimos depois, já estávamos uma hora atrasados: a secretária havia enviado a hora errada para nós e não nos conseguiu avisar a tempo. Lá dentro, os antigos donos do apartamento já nos esperavam, talvez um pouco ansiosos, mas felizes por venderem a casa. O tipo da agência imobiliária disse-nos que queriam o dinheiro para investir em Espanha. Eu só pensava que devia ser um investimento e tanto!

O notário era um homem dos seus sessenta e tal anos, muito bem posto, natural da Alsácia, cheio de pequenas anedotas sobre assinaturas de escrituras e sobre a vida em geral. Depois dos antigos donos saírem, ainda ficámos com ele um bom bocado a rever os documentos todos e a ouvir as histórias que tinha para contar. Já tínhamos a cabeça no nosso lote mas teria sido desagradável apenas pedir-lhe para se apressar. Ficámos e ouvimos.

Saímos, um molho intrigante de chaves num pequeno saco de cartão, e dirigimo-nos quase de imediato para a nossa casa. Pensar nisso, na nossa casa, parecia uma coisa irreal. Eu, que tanto tinha lutado contra a ideia de ter uma casa aqui, estava de repente radiante, ao pensar em tudo o que ainda havia por fazer. Passeei-me pela casa vazia, a tentar sentir-lhe o pulso mas na verdade já me sentia a viver ali desde a primeira e única (!) visita que fizemos antes da compra. Voltar para a casa antiga com a cabeça na nova foi uma tortura. Só pensava em soluções para podermos mudar-nos o mais rapidamente possível, ontem já era demasiado tarde!

Apetece-me dizer Possa, para onde foi este ano inteiro? mas sei exactamente como o tempo custou a passer, apesar de agora me parecer que foi tudo demasiado rápido. Parece que já vivo nesta casa há anos, encontrei o meu sítio mesmo ali. Às vezes vêm-me à memória as imagens das infinitas caixas do Ikea que descarregaram numa manhã gelada de Janeiro pela janela do quarto dos miúdos. Ou as imagens dum marido a montar móveis atrás de móveis e a dizer que tinha achado a sua vocação. E a imagem do miúdo a dormir na sua cama, a primeira a ficar pronta. E as imagens da nossa sala, sem uma peça de mobiliário ou decoração, a não ser a televisão que me tinham deixado no chão. E lembro-me de ter muito frio porque nevava e o aquecimento precisava (ele mesmo) de tempo para aquecer e eu tinha a barriga do tamanho dum balão!

Ontem era dia de celebrar mas entrei em casa quase à meia noite e a minha gente já dormia. Guardemos para depois a celebração não só do tecto sobre as nossas cabeças, mas especialmente dum sítio a que chamamos nosso.

janeiro 05, 2016

Regressar ao batente

No final, tudo correu bem.
 
Eu trabalhei as oito horas e ela esteve longe de mim as mesmas oito. De manhã, quando a deixei na creche, fixou-me com um olhar que reflectia desconfiança e muita, muita hesitação. Silenciosamente, perguntava-me: quem é esta gente com que me vais deixar? Eu hesitei também um pouco na saída mas, consciente do risco dela começar a chorar e eu não conseguir mais deixá-la, saí quase a correr.
 
Tudo correu bem. Eu não tive demasiado sono, à excepção do período pós-almoço mas posso pôr as culpas na digestão. O cansaço só chegou à noite, quando me consegui finalmente sentar um bocado no sofá e dei pelos meus olhos a fecharem-se teimosamente. Ela já chegou cansada a casa. Quando me viu entrar na creche no final do dia, olhou-me com uma indisfarçável alegria e, pareceu-me, com algum alívio por ver finalmente uma cara conhecida, a falar uma língua conhecida. Estava contente, sentada a brincar com um livro e isso tranquilizou-me: consegui imaginar que ela tinha passado o dia bem sem mim e, assim, reduzir drasticamente o gigante complexo de culpa que sinto por ter de voltar à vida normal.
 
Tudo correu bem menos quando percebi que dificilmente voltará a haver tempo para desperdiçar nestes finais de dia, quando percebi que há dois banhos para tomar, uma bebé cansada e rabugenta, um menino que precisa de atenção e de contar como lhe correu o dia, um marido que dá a atenção aos dois à vez, o jantar e os almoços do dia seguinte que não se fazem sozinhos. Fiquei triste, nesse momento. Mas, ao mesmo tempo, senti-me determinada a encontrar alternativas que nos possam poupar a alguma da rotina: dar banho aos dois ao mesmo tempo, cozinhar montanhas durante o fim de semana, evitar as distracções. Vai ser possível, é nisto que acredito senão não vejo qual é o sentido de trabalharmos tanto para não estarmos com eles. Procuro truques, pequenas soluções, alternativas imaginativas e acredito com firmeza que vamos melhorar.
 
Durante o dia, senti em ondas as saudades de ser dona do meu tempo. Senti saudades do silêncio da nossa casa e do conforto de não precisar de sair. Durante o dia, ocupei-me o melhor que pude, evitei muitos cumprimentos mas recebi outras tantas boas vindas, tentei a custo recuperar um ano inteiro de ausência para concluir que isto me vai demorar bem mais do que uns dias.
 
Comecei ontem a dolorosa tarefa de entregar a minha bebé ao Mundo. De aligeirar os nossos laços, confiar em estranhos, sem poder evitar a totalidade do choque. Bem sei que os filhos, no fundo, não são nossos mas ainda está por inventar a cura para a dor que se sente em deixá-los ir. E quase me rio, que isto agora é apenas a creche. Sei que tudo é necessário para podermos avançar. E, simultaneamente, senti o alívio de poder voltar a sentir-me normal e deixar de me afundar na confusão dos dias em que o som das nossas vozes era tudo o que ouvia. Seguimos as duas em frente, que é na verdade a única opção, e crescemos juntas.