dezembro 19, 2015

Podemos dormir e acordar já em 2016?

Este é o mais difícil mês de Dezembro de que me lembro. Não, quem estou eu a enganar? Este foi o mês mais difícil de que me lembro, ponto. E foi também o ano mais duro que acabamos agora de atravessar. Eu mal sobrevivi, eles não deram por nada.

Foi um ano tão difícil quanto feliz. O início do ano foi brutal em termos de mudanças: comprámos a casa a treze de Janeiro, mudámos no primeiro de Fevereiro, a Amália nasceu a vinte e seis. Fiz as mudanças grávida de oito meses, mais a arrastar-me do que outra coisa, nada planeado, as nossas coisas enfiadas à toa nos abençoados sacos do Ikea, nenhuma ordem definida. Nevava, as minhas botas estavam empapadas naquela neve já castanha, multiplicavam-se as viagens entre a casa velha e a casa nova. Eu subia a custo o escadote para limpar os armários, tinha medo de cair e adiantar demasiado o nascimento da gaiata mas precisava de deixar tudo pronto para podermos começar de novo.O Mário pintou toda a casa velha em apenas um dia, dormiu entre baldes de tinta e trinchas, fez o que pôde e no fim o senhorio achou pouco. Que se lixasse, nós só queríamos sair dali.

Depois foram vinte e poucos dias sozinha em casa. Todos os dias com coisas para fazer, livros e brinquedos para arrumar, móveis ainda por montar, decisões sobre arrumações e ia arranjando uns momentos de sofá. Tomava o pequeno-almoço em silêncio enquanto estudava o pequeno jardim e a neve que ia caindo e cobrindo as árvores cujo nome ainda desconhecíamos. Havia tanto silêncio e a casa ainda não cheirava a nós mas começava lentamente a aquecer. Aos vinte e seis dias do mês de Fevereiro, passei a noite acordada. Primeiro com o miúdo, que parecia ter uma gastroenterite. Quando ele finalmente acalmou, eu finalmente percebi o que estava a acontecer comigo: estava em trabalho de parto. Não tive dúvidas e, apesar de não entender de onde me vinha este instinto, eu sabia que tinha que esperar e que estava tudo bem. Até não estar, até me rebentarem as águas e fazer a viagem até à maternidade no silêncio fundo de quem sabe que a vida estás prestes a mudar. Outra vez e desta vez sozinha numa sala de parto a meia luz, uma escuridão onde não ouvia outras mães, a ter que suplicar pela anestesia no melhor Francês que conseguia arranhar e a ter a minha filha nos braços em menos de quarenta minutos de gritos animalescos.

A minha filha definiu-me o resto do ano. As estações sucederam-se e ela foi a medida de todas as coisas. Ela ocupou-me todo o espaço livre, ela trouxe-me a alegria pura de ter um bebé perfeito e a exaustão profunda de quem não consegue dormir. Em casa durante quase um ano, eu passo-o em revista e tudo é ela: quando só dormia na nossa cama, tão pequenina; quando olhava tão calada para os nossos olhos e pensávamos que era mansinha; quando bebia o leite tão depressa quanto conseguia; quando a carregava para ir estender a roupa; quando as noites significavam acordar de hora em hora; quando admitia em voz alta que ela, como o irmão, não sabia dormir; quando ela começou a reclamar com tudo e a gritar com toda a força que tem; quando ela se ri, já com dois dentes e a sua alegria começa naqueles grandes olhos castanhos; quando ela gatinha e tenta roubar tudo o que o irmão tem nas mãos. Ela esgotou-me e fez-me duvidar sobre as minhas qualidades de mãe. Ela trouxe-me mais perguntas do que respostas e eu demorei quase um ano inteiro a saber lidar com isso. Entretanto, o irmão cresceu, tornou-se meigo em casa e arisco na escola, as birras abrandaram (mas não desapareceram), começou a medir o seu amor por toda a gente ("Mãe, gosto de ti dois zero zero três zero zero! É muito?"). E agora já quase brincam juntos e ela delira quando o vê e ele quer sempre enchê-la de beijos e são mesmo irmãos.

Este ano quase me derrubou. Se consegui escapar (mais ou menos) incólume, tudo devo à minha família. A um marido que aguentou as pontas e me amou sempre com o seu pragmatismo e força de vontade, ao meu filho que não gosta de me ver chorar, à minha filha que foi crescendo saudável e boneca, aos meus pais e avó que não descansaram enquanto eu não descansei, à minha irmã que tanto amou os seus sobrinhos. Tenho vergonha de admitir mas este ano foi mais forte do que eu. Não consigo escapar ao sentimento de que sou um falhanço mas tenho lutado muito para conseguir ver além isso. Sei que preciso de voltar ao mundo, de voltar à vida real e que só isso me vai conseguir trazer de volta. Este ano, mais do que nunca, estou grata pela família que tenho e que nunca desistiu de mim, apesar de toda a frustração. Quero muito que este ano acabe, muito mesmo, na certeza de que, depois destes 365 dias de dificuldades, só podem vir coisas boas. Só mesmo. Talvez eu possa voltar a sentir-me inteira, capaz, tranquila. Até lá, deixo os meus votos de Boas Festas e que os vossos balanços possam ser menos negros, mais positivos que o meu. Para o ano que vai começar, desejo a todos força, optimismo e muito, muito amor. Como o que desejo para mim.

dezembro 02, 2015

Dois dias (parte IV) *

Os dois dias foram-se à vida. Eu calei-me muito durante este tempo, caminhei, estiquei as pernas e o juízo e ganhei um pouco do fôlego de que precisava para voltar. Se estes dois dias foram suficientes? Se calhar não, mas por agora vão ter de servir.

Táxi até ao terminal dois, prioridade nas filas, a miúda inquieta no avião e vejo-me de repente no frio do mercado de Natal. Não estava vestida para o ocasião e por isso, enquanto comemos à pressa e bebemos o vinho quente, tremo um pouco de frio. A roda gigante está mesmo ali ao lado e ninguém parece incomodado pelas temperaturas baixas. Os miúdos estão quentes e isso reconforta-me.

Chegamos a casa e é noite cerrada. Há no ar aquele silêncio que só se pode encontrar aqui e os vizinhos parecem não estar em casa. Desfaço um pouco da mala mas depressa me canso: quero vestir o pijama e dormir. Adormeço a desejar que as baterias que recarreguei nestas duas semanas me cheguem pelo menos até ao final do ano. Aí, a história vai ser outra.

(* uma série de posts em diferido, para não atrapalhar o curso da história)

dezembro 01, 2015

Dois dias (parte III) *

Sou teimosa e resolvo apanhar outra vez o eléctrico. Foi a custo porque não me apetecia sair do sofá e a ideia destes dias era exactamente fazer o que me apetecesse. Mas como é que se pode ir à janela, olhar para este céu azul e ficar em casa? Pois, não se pode. Desta vez, o eléctrico não demorou tanto e vinha menos cheio. Consegui um lugar e fui tranquilamente a olhar pela janela até à Graça.

Não sei quantas vezes subi até à Senhora do Monte mas tenho a certeza de que subirei muitas mais. Corre um vento frio, aperto o casaco o mais que posso e sento-me num dos bancos livres. Miúdas a beberem cerveja ao Sol, turistas franceses e irlandeses, guias que debitam guiões sobre o rio e o convento do Carmo sem paixão nem entusiasmo, cadeados do amor nas grades, as cores incríveis do casario de Lisboa. É Outono mas podia certamente ser um dia de Primavera.

Começo a descer pela Graça, onde páro mais uns minutos. Ao meu lado, um casal americano com dois filhos pequenos a discutir no tom mais diplomata possível sobre o que fazer a seguir. Como eu, descem em direcção ao miradouro de Santa Luzia mas separamo-nos antes da subida para o castelo. Deste lado, o Tejo imenso e a aparente acalmia da margem de lá. Vendedores ambulantes por todo o lado, pintores de aguarelas, azulejos e roupa estendida ao Sol. Quando ouço o ronco do eléctrico nos carris, corro para o outro lado da rua e consigo um lugar com a janela aberta. Entro em pânico quando penso que perdi o telefone na paragem: reviro a mochila e os bolsos do casaco e preparo-me para sair na próxima paragem e voltar para trás quando, plim!, o encontro numa bolsa escondida. Alívio alívio alívio!

Vou directa à Estrela, onde me sento com os restos do jantar de ontem. Ali ao lado, em pleno jardim, a creche onde o Vicente ainda andou deixa-me de lagriminha ao canto do olho. Os bancos dividem-se entre os reformados que passam o tempo, turistas que recuperam o fôlego, miúdos das escolas em redor. Leio durante uns quarenta minutos antes de me pôr a caminho: casa não é casa sem um café na Tentadora!

(* uma série de posts em diferido, para não atrapalhar o curso da história)