outubro 08, 2005

Um longo sábado de recordações

Foi uma sensação estranha, quase tive medo. A viagem ainda não ia a meio e entrei numa aldeia por onde sempre passo. O carro sofria enquanto galgava a estrada de paralelos incertos que nunca quiseram modificar, talvez porque assim é uma aldeia mais portuguesa. Era sábado de manhã, o movimento era pouco à entrada mas depois lá se juntava mais gente ao pé da carrinha. A carrinha buzinava insistentemente e as velhas corriam, tanto quanto podiam, para junto dela. Era uma mercearia ambulante.


Foi a buzina que me encheu os olhos de lágrimas. A buzina e a sensação de que a vida tinha sido sempre assim. Ali, o tempo recusava-se a passar e eu, pobre mulher de 25 anos, senti-me como se assim tivesse vivido toda a minha vida. Como se não soubesse o que é um hipermercado, um cinema, um quiosque, como se não tivesse visto o mundo. A buzina insistia e parecia que me lembrava de um mundo que nunca cheguei a conhecer, um mundo que só ouvi da boca dos meus avós e dos meus pais, um mundo em que [cliché] as sardinhas eram divididas e o caminho para a escola se fazia a pé.


O passado assaltou-me assim de repente. Melhor, entrou pela janela aberta para espantar o calor do Outono. De repente, eu estava deitada debaixo duma figueira, encostada a um poço, só a ver o tempo passar. Via a minha avó a colher figos ou a passear-se pela horta com o sacho ou a enxada. Era Verão e bebia gasosa com groselha com o meu primo porque só com ele é que esta extravagância era permitida. Sentava-me com a minha irmã e uma amiga nas escadas do prédio da minha avó, que nos preparava piqueniques de Tang e salgados em forma de peixes. Era no tempo em que não conhecia o mal de ser, de existir. A angústia era, então, um sentimento desconhecido, só manifestado no momento em que éramos os últimos a ser escolhidos para a equipa de futebol. Chovia torrencialmente, a rua parecia um rio raivoso e revolto e nós jogávamos às cartas com um baralho decorado com mulheres nuas, ainda perseguidos pela ideia do pecado. Era tão pequena e feliz e despreocupada, como são todas as crianças. Às vezes desejo nunca ter crescido mas arrependo-me logo a seguir. A vida era mais fácil mas, continuasse eu pequena, e nunca teria arranjado ninguém da escola para beijar debaixo daquela ponte.

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